Depoimento de mestre Julio Secco acerca de Carlson Gracie
Por Julio Secco
Calei-me pois a morte foi de um grande amigo. Depois de ver tanta gente ir à Internet e dizer tanta mentira, resolví, depois de ler as revistas Gracie e Tatame, falar algumas coisas sobre um amigo que se foi e que, se bobear, está jogando “jogo das palavras” com São Pedro.
Conhecí o Carlson quando era garoto, na luta contra o Cirandinha, quando o mesmo, gritou algo parecido com: “tirem esse homem de cima de mim!”. E era uma diferença de quase trinta quilos a mais para o Cirandinha.
Na primeira luta contra o Passarito, pouca gente sabe, o Carlson lutou duas horas no chão duro e com a clavícula quebrada. Na segunda, mandou o homem pro hospital. E depois foram várias, sendo que pouco tempo antes da luta, quando o médico vinha tirar a pressão sanguínea, sempre dava 12:8. Perfeita, pois o Carlson era um cara tranqüilo. Depois de ser roubado na luta contra o Euclídes, na Bahia, tanto que o mestre Hélio tirou lição da mesa, que quando o Rickson lutou com o Zulu no maracanãzinho, os jurados eram eu, Sérgio Sveltzer e João Alberto e Juiz de ringue, o Mansur.
Carlson não gostava de treinar, era uma dureza. O mestre Hélio sempre dizia: “esse cara tem 76 quilos, mas uma força nervosa fantástica.”. O primeiro casamento de Carlson foi com a Ione, uma linda mulher. Saíamos todos os fins de semana e íamos dançar no “Black Horse”. Carlson, eu e às vezes o zura do Drauzinho com a Sonja, irmã do Carlson. Mas o casamento com a Ione não deu certo, separaram-se e ele foi morar na minha casa, pois meu pai tinha um carinho grande por ele. Tínhamos 16 cavalos de corrida na Gávea e o meu pai dava dinheiro escondido pro Carlson jogar. Ele adorava jogo. Quantas vezes fomos no “Pedregulho”, em São Cristóvão, às vezes para olhar e às vezes para levar galos de briga.
Anônimo - 27/03/2006
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Quando eu não viajava durante a semana, íamos à sauna do Copacabana Palace tomar duchas e massagens, o Carlson adorava. Joguei pólo a cavalo e era sócio do Itanhangá Golf Club, para onde eu sempre levava o Carlson comigo, pois ele adorava tomar massagens, e bater um papo com o Renato massagista. Um dia recebí uma carta do conselho do clube, do qual eu era vice-presidente, dizendo que um amigo meu andava correndo pelo campo de golf, até chegar ao campo dos fundos de pólo.
Depois de lá, nós íamos para o Country Club do Rio de Janeiro, em Ipanema. Lá, junto com outros amigos, inventamos um jogo de Futebol no campo de Tênis e demos o nome de footaotênis. A bola só podia quicar uma vez em cada campo. Eu e o Carlson fazíamos dupla e em um dia jogamos vinte partidas, sendo que a final foi com a dupla Rodolfo Antici e Baldomero Barbará Neto. Ganhamos.
Todos os meus amigos gostavam do Carlson. Ele era uma figura alegre e bem humorada. A história do dicionário é verdadeira, nunca ví o Carlson perder para ninguém. E olha que o adversário sempre jogava com o dicionário na mão.
Teve uma época em que nós tínhamos nossa turma de praia. Otavinho Carvalho, já falecido, Teodoro Carvalho, Brahminha e outros. Um dia ele apareceu no meu frigorífico para almoçarmos juntos, como de costume, e me avisou que iria lutar com o Ivan Gomes, um cara duríssimo, com 95 quilos e muito forte. Perguntei se ele estava treinando e ele me respondeu que estava mais ou menos. Neste mesmo dia, treinamos no carpete da sala de reuniões do frigorífico.
Anônimo - 27/03/2006
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Nunca tive aula com o Carlson, mas sempre treinava com ele. Ele ia conosco pra Itaipava, e lá treinávamos muito no gramado de nossa casa. Quando chegou do Recife - PE, foi direto ao frigorífico. As mãos pareciam dois pilões, inchadas de tanto bater em pé no Ivan Usava óculos escuros, pois os olhos estavam inchados. Mais tarde, quando conheci o Ivan, ele me disse que quase foi a nocaute duas vezes. O Carlson me disse que o Ivan, dali a trinta dias, viria ao Rio e me propôs abrir uma academia. Nesta época, ele vivia com a Silvia, uma mulher bonita, funcionária pública que ganhava bem e tinha seu próprio apartamento.
Um dia aparece ele como o Ivan. O homem era mesmo uma tora. Forte feito um cavalo e sabia bastante sobre luta. Inclusive, além do judô, uma luta tipo greco-romana. Ele tinha as mãos e os pés muito rápidos. Resolvemos abrir uma academia na rua Toneleros, quase esquina com Figueiredo Magalhães. Ali o Ivan fixou residência.
Anônimo - 27/03/2006
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O Carlson, o Ivan e eu, sempre treinávamos escondido e aí ensinamos JJ ao Ivan, Como fiquei muito amigo dele, pedi ao mesmo que me prometesse nunca desafiar o Carlson, Não que eu tivesse medo, mas já era experiente com o caso Valdemar Santana contra o Mestre Hélio, na ACM, onde os dois lutaram 3 horas e 40 minutos. Tem um retrato na revista Fatos e Fotos eu tirando a dona Margarida do Ringue. Fomos burros, mas eu era o mais novo, pois nos primeiros 10 minutos o Valdmemar apanhou tanto que ele brigou com o juiz e saiu do ringue. Nós o jogamos de volta e todos sabem o desfecho.
Voltando ao Ivan e Carlson, chegaram a ter na academia, cerca de 500 alunos, pois a Silvia, mulher do Carlson, era quem tomava conta da contabilidade. Mas ela foi visitar os pais no espírito santo, quando capotou o carro e faleceu. A secretária da época começou a roubar a academia e ela acabou. O Ivan voltou para a Paraíba e o Carlson, com os tatames que sobraram, montou uma academia em cima da Casa Gebara na avenida Nossa Senhora de Cobacabana.
Eu tive problemas com um sócio chamado Tião Maia e muito ocupado, parei de treinar por quase 3 anos. Um dia o Ivan passou pelo Rio, pois ia atrás da trupe do Antônio Inoque no Paraná e me procurou depois me avisando que estava indo pro Japão. Um ano depois ele me telefonou que estava no Rio, onde ia lutar com o Ruska. O Ruska era um campeão mundial do peso e absoluto de Judô. Um gigante holandês, com 2 metros de altura e sem um pingo de gordura no corpo, o qual o Ivan botou pra dormir graças ao Jiu Jitsu com um conhecido golpe chamado Mata Leão. Um dia fui procurado pelo meu amigo Carlson, que já tinha casado com a Marly, uma mulher que por acaso é natural de Arroio Grande, cidade vizinha de onde eu tenho campo e moro: Jaguarão – RS, para resolver um problema, pois Carlson já estava na Figueiredo Magalhães, aonde dividia a academia com o Rolls, já falecido. O qual me disse o Carlson na época, mandou treinar judô com Osvaldo Alves, hoje nono grau de Jiu Jitsu, no clube de regatas do flamengo.
Anônimo - 27/03/2006
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Ali o Carlson criou uma turma boa de luta, para alguns cheguei até a dar aula. Ali tinham alunos de bom e mau caráter.
Voltei treinar Jiu jitsu e fui reciclado pelo Rickson na academia que montei junto com o mestre Hélio na sede náutica do clube de regatas Vasco da Gama. O Carlson ficou um pouco enciumado, mas fizemos uma boa equipe de competição. Quando eles foram para o Humaitá, parei de treinar com o Rickson e com o Relson, pois o Rouker, o Royler e o Royce não eram faixa preta ainda. Juntei-me com o Renan Pitangui e fizemos uma equipe boa de competição na KS-Academy, na barra da tijuca, mas segui sempre encontrando com o Carlson e ele freqüentando a minha casa.
Resolvi vir morar em Jaguarão, fronteira com o Uruguai, em julho de 1998. Avisei ao Carlson, pois na véspera da minha viagem almoçamos juntos. Nesta época ajudei o senhor Paquetá com um processo promovido pelo Royler, o qual foi muito ajudado pelo meu depoimento. Como ele trabalhou quase 6 anos comigo, me senti na obrigação, mas hoje me arrependo. Prefiro me calar.
Anônimo - 27/03/2006
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Hoje, aqui no sul, tenho cerca de 100 alunos a um preço módico de 50 reais por aluno, sendo que quando levei meu primeiro aluno, Guido Cajaty, para competir no mundial de 2000 e ele foi terceiro colocado e o Carlson foi o primeiro a abraçá-lo dentro do tatame. Passei uma semana no Rio e o Carlson ia tomar café da manhã todos os dias comigo. No ano seguinte, no campeonato mundial, o Carlson foi tomar café comigo e levou o Teodoro Carvalho para me ver. Fomos almoçar e descobri que o Carlson estava morando sozinho na rua Sá Ferreira. Chamei o senhor Paquetá e compramos juntos um celular pós-pago para o Carlson, pois achávamos que ele não podia ficar sem comunicação e que deveria também procurar um plano de saúde e que o mesmo não aceitava a velhice.
Em 2002 levei uma parte da minha equipe que ia lutar o mundial para treinar na academia dele. Ali encontrei a Geysa, que foi minha namorada, mais velha que eu e terceira irmã de Carlson. O Carlinhos tinha dado uma grana para ele ajudar na disciplina nos tatames do Mundial.
Mas Carlson sempre foi muito descansado com ele mesmo. Depois do campeonato, falei umas 4 vezes por telefone como ele. Uma vez ele me telefonou de Chicago e não quis me contar que já estava doente, pois ele sabia que eu iria botar a minha filha, que gosta muito dele e que é uma grande Oncologista no Rio de Janeiro, pra cuidar dele.
Anônimo - 27/03/2006
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Foi embora o meu amigo. Apesar de mais velho do que eu, poderia ter vivido muito mais, pois tinha uma saúde de ferro. Nunca o vi doente, a não ser um caso de gota, pois ele gostava muito de churrasco.
A comunidade do Jiu Jitsu perdeu um grande ser humano. Como me disse o Zé Mário Sperry, se ele tivesse aceito os 20% que o brazilian top team ofereceu, ele não precisaria de mais nada, pois estaria rico.
Carlson serve de exemplo para os lutadores atuais, em 75 anos de vida, nunca brigou fora dos ringues. Uma só vez na porta do cinema Metro Copacabana, um cara encheu o saco dele, então Carlson deu uma queda nele e foi embora.
Quando eu soube da morte do Carlson, 6 horas depois, eu estava trabalhando no campo, a cavalo, e fiquei profundamente chocado. Só Deus sabe como eu me senti. Mas eu tenho a certeza que ele está bem esteja onde estiver, junto com Deus. Sempre que rezo, peço que ele nos proteja e ao Jiu Jitsu também.
Amigo Carlson, até um dia. Deus te abençoe.
Júlio Frederico Secco.
Mestre 8º Grau, faixa vermelha e preta